Nessa segunda
parte da entrevista, o autor do livro O Que Farei Da Minha Vida Ao Sair Daqui? Um Ensaio Sobre Pedagogia Carcerária,
que abrilhantará o Café Literário, no próximo sábado, a partir das 08:00 hs, na
Biblioteca Municipal, evento promovido pela Secretaria de Cultura de Mutum.
Sérgio
Rodrigues de Souza nos conta sobre a iniciativa de escrever essa obra em que
filosofia, antropologia, psicologia social e pedagogia se encontram para
analisar o homem em suas prisões a partir da busca de perspectiva para a vida.
O
autor também fala da sua expectativa para o Café Literário quando poderá
compartilhar com os participantes, cara a cara, sobre a história do seu livro
que traz em seu bojo parte da sua história e da sua concepção de vida.
ENTREVISTA
MUTUM
CULTURAL: O seu livro surgiu a partir de uma experiência pedagógica em
um ambiente específico. Comente sobre essa prática que te levou à reflexão:
SÉRGIO
RODRIGUES DE SOUZA: No ano de 2008, a Professora Márcia Luzia Pires de Sá, à
época Secretária Municipal de Educação de Mutum, junto à Inspetora Meyre
Ribeiro, me convidaram para trabalhar, como professor regente de turma, na
Unidade Prisional de Mutum.
Na oportunidade,
iniciei um trabalho de registro das atividades pedagógicas, de
observação-participante, de depoimentos dos detentos [na condição de
estudantes], entrevistas, histórias pessoais, coletivas e sobre todo este
material, construí uma investigação acadêmico-científica fundamentada no estudo
de autores clássicos nos campos da Antropologia, da Psicologia, da Filosofia e
da Sociologia.
Em 2014, fui
estudar sob a orientação do Professor Dr. Luis Eligio Martelly, em Havana, que
é pesquisador na área de educação prisional e a maior autoridade mundial no
assunto, tendo criado métodos inéditos de pesquisa neste campo. Na
oportunidade, pude conhecer o sistema educacional cubano, o sistema prisional
daquele país e assim, elaborar propostas pedagógicas para adolescentes em condições
de privação de liberdade.
Em 2016, fui
estudar com a eminente Professora Drª. Amelia Haydèe Imbriano, na Universidad
Kennedy (Buenos Aires), a mais conceituada cientista internacional em crimes
violentos cometidos por crianças e adolescentes, autora de vários clássicos que
trazem reflexões profundas sobre o tema. Neste momento, é que elaboro meus
estudos sobre a questão da delinquência juvenil como forma de busca por
reconhecimento individual e coletivo, mais uma forma estranha de compensar a
ausência da autoridade e da presença parental concreta.
Neste mesmo ano
(2016), tenho a oportunidade e a honra de orientar um estudante de Mestrado da
Universidad Del salvador (Buenos Aires), o Sr. Belarmino Oliveira, que estudava
e pesquisava sistema de educação na Penitenciária de Viana (ES). Este
representou um momento ímpar, porque era a hora de observar o trabalho sobre
prisões a partir de uma lente externa.
MUTUM
CULTURAL: Na sua percepção, o que a perda da liberdade pode provocar no
homem?
SÉRGIO
RODRIGUES DE SOUZA: A primeira coisa que a perda de liberdade provoca é um
alijamento social, o que por si só, já representa um fardo muito intenso e
bruto para um ser humano suportar, porque desde muito cedo, somos educados e
educamos para uma vida em comunidade, em companhia de outros e isto, a pertença
grupal é um sentimento instintivo mais antigo que o próprio ser humano, porque
a estrutura cerebral reptiliana antecede em centenas de milhões de anos à
estrutura cortical consciente. Estar afastado da sociedade significa, em termos
primitivos, a uma condenação existencial.
Na esteira
disto, ocorre a perda de alguns sentimentos, como a perda de empatia,
transformando o que antes poderia ser um ser humano em qualquer coisa, chegando
ao ponto de ser classificado como monstro, ou seja, uma casaca vazia que não
sente nada por ninguém.
A perda de noção
de tempo é outra parte do processo, as paredes brancas tendem a ir desgastando
o senso de mudança das horas e estações até que não exista mais, no indivíduo,
a capacidade de determinação do espaço-tempo pensado de forma abstrata como é
possível fazer. Ocorre, ainda perda da racionalidade, alterações psicológicas,
estas difíceis de prever, porque cada ser irá reagir de forma singular quando
privado de sua condição de liberdade.
O pertencimento
social conduz a obediência a leis e costumes que dado o seu constante exercício
forma o que se chama de consciência social, princípios morais, obediência
civil, civilidade, urbanidade, ética. Quando se afasta o indivíduo deste
processo, aos poucos seus sentimentos com relação a estas situações vão
desaparecendo, uma vez que não são praticados e o que resta é um ser que segue
suas próprias leis, este que Aristóteles (384-322a.n.e. [2007] classifica como
não sendo humano, chegando a afirmar que ou é um deus ou é um animal, porque
somente os deuses e os animais podem viver sem leis e/ou sozinhos.
MUTUM
CULTURAL: O que precisa ser aprimorado no nosso sistema prisional?
SÉRGIO
RODRIGUES DE SOUZA: A estrutura de cumprimento da sentença, em que a maioria
dos condenados fica sem ter o que fazer, perdidos em pensamentos espúrios e
vazios. Nisto, surge a necessidade de que se aprimore na questão de
proporcionar atividades laborais concretas, destinadas a produzir bens de
consumo próprio e que possam gerar divisas para o Estado.
A questão do
ensino e das atividades físicas, religiosas, também necessita ser pensadas de
forma a que os detentos tenham acompanhamento profissional adequado e isto não
se trata de dar a eles, nenhum tipo de privilégio, mas parte da ideia de
proporcionar auxílio para que possam ter o mínimo possível de condições de
reabilitar-se socialmente.
Quando o sistema
deixa o indivíduo entregue à sua própria sorte, crente de que a natureza divina
cuida de proteger os homens do mau, direcionando-os para caminhos virtuosos,
tem-se a produção de criaturas estranhas e sem medidas que seguirão seus
próprios princípios de fé e de verdade.
Atividades
laborais irão contribuir para o aperfeiçoamento e mesmo para uma profissionalização
do apenado, porque em sua maioria não possuem profissões de ofício, a começar
que são detidos em tenra idade; agrega-se a isto, o nosso combalido sistema
educacional que, ao estrangular o ensino técnico, entrega para a sociedade, um
jovem de 18 anos de idade que não possui uma profissão oficializada, ainda.
Dispõe na sociedade um sujeito crítico, mas que não sabe fazer absolutamente
nada!
MUTUM
CULTURAL: Ao construir sua narrativa, é utilizado a logopeia de Ezra Pound, ou seja, a comparação com narrativas da
cultura universal. Dois exemplos são a velha história árabe d’O Gênio Na Garrafa e o Minotauro da mitologia
grega. Qual a importância dessas narrativas universais para a compreensão do
ser humano na sociedade hoje?
SÉRGIO
RODRIGUES DE SOUZA: A garrafa representa o que hoje se preconizou chamar de
bolha, onde todos nascem, crescem, formam uma personalidade virtual, reproduzem
um vazio intelectual e espiritual, tudo isto na ausência mais completa de
qualquer relação de empatia, porque não existe contato físico, como se tal
coisa fosse transmitir uma doença crônica mortal.
Assim é que, no
aniversário dos amigos e mesmo das pessoas mais próximas como marido, esposa,
namoradas, filhos, manda-se um emoj de flores, de abraço, de beijo, uma oração
[re]copiada de algum site qualquer, tudo isto em nome do tempo, da falta de
tempo, etc... Em pouquíssimos anos, todos à volta são estranhos, o que faz com
que quando ocorre um atropelamento, todos querem tirar fotos e selfies com a
vítima arrebentada, ao invés de chamar a ajuda especializada.
Com o tempo,
torna-se avesso ao contato humano, ao ponto de que se alguém vem com a intenção
de dar um abraço isto já é interpretado como assédio e um processo judicial ou
um empurrão aguarda o indivíduo inocente. Perde-se a humanidade quando se passa
muito tempo afastado do contato humano com seres humanos, lidando tão somente
com situações mecânicas de relacionamentos.
Com relação ao
Minotauro, o labirinto representa esta existência vazia, sem sentido e que não
mostra a menor possibilidade de uma fuga em que o ser humano percorre não se
sabe que vias, em busca sabe-se lá de quê, sozinho, porque teme procurar ajuda
e nisto admitir que está perdido, porque o seu companheiro, mais perdido que
ele, procura em si esta condição de força e de coragem. F. Nietzsche tem um
aforismo onde diz: “Eu sou o valor que dou a mim mesmo!” E o valor que a
igualdade pode auferir ao ser humano é isto: o nada!, a solidão, o vazio, a
ausência de sentido completa para si mesmo. A vida e a existência não podem ser
reduzidas a um labirinto sem saída, porque o fracasso constante embrutece até o
ponto de ver-se entregue a um estado deplorável de psicopatia.
MUTUM
CULTURAL: Em que situações da vida atual o ser humano sente-se como
encarcerado e não ousa fazer a pergunta que intitula o livro?
SÉRGIO
RODRIGUES DE SOUZA: No Século XXI, a todo instante. E tornou-se escravo
desta condição porque teme a resposta que virá de si mesmo; ele não sabe o que
fazer de sua vida no instante seguinte, dado que a existência e toda a liberdade
porque o ser humano lutou desde fins da década de 1960, transformou-o em um
autômato, uma criatura anômica, sem saber o que quer da vida, vivendo de acordo
com a gíria: seguindo o fluxo.
Para fazer tal
pergunta, é preciso ousar e saber que a resposta pode ser um simples não sei e
isto não significa estado de decadência, devendo ser tomado como princípio para
buscar uma resposta. Em Filosofia, toda grande descoberta parte de uma pergunta,
para a qual inicialmente não se tem resposta alguma, às vezes, nada mais que
hipóteses, suposições, elucubrações. O valor encontra-se na coragem de se fazer
a pergunta e ao deparar-se com uma incerteza ou um vazio, compreender que
faz-se necessário preencher estes espaços em branco e isto somente se consegue
enfrentando a realidade, por mais cruel que possa parecer e mesmo apresentar-se
ao indivíduo.
O fato de evitar
fazer tal pergunta representa despreparo para com a existência, medo de ter que
enfrentar a vida e fracassar. No entanto, fracasso e sucesso são faces da mesma
moeda, produtos da ação. Como diria o Zaratustra de Nietzsche: “Eis a vida!
Então, vamos à vida!”
MUTUM
CULTURAL: O que este livro diz para os trabalhadores na educação como
professores, especialistas, diretores e serviçais, bem como os gestores, no
exercício da sua profissão?
SÉRGIO
RODRIGUES DE SOUZA: Educação é um compromisso social, não um direito como se
quer fazer acreditar; é um dever cívico. A comunidade escolar deve tomar para
si a missão de formar um homem em sua integralidade. E isto implica em
construir valores concretos, tendo em vista a história daqueles que nos
antecederam e a pretensão de construir um Estado melhor, não abstendo da
tradição clássica e nem dos princípios humanísticos que permitiriam ao homem
resistir a tantas e tantas mudanças radicais.
À escola cabe ensinar
aos estudantes como aplicar seu intelecto para o crescimento individual e
social e nisto inclui o respeito e a obediência àquilo que mais se possui de
valor na sociedade: O Outro. Nietzsche expressa sobre isto o seguinte: “Quando
se julga um criminoso, diz-se que ele falhou com a sociedade. engano fatal. Foi
a família, a escola, o padre, o pastor, todos que falharam com ele” (2007) e,
por consequência, todos falharam ainda com a sociedade que passa a temer este
indivíduo e a sofrer em suas mãos.
MUTUM
CULTURAL: Quais são as suas expectativas para o Café Literário no dia 15
desse mês, na Biblioteca Municipal?
SÉRGIO RODRIGUES DE
SOUZA:
Minha expectativa é a de que os participantes entendam que o livro é uma
expressão de que existe uma necessidade premente de discussão sobre uma
problemática e não sobre um problema isolado. Todo o texto traz uma discussão
em torno de uma situação factual, presente e crescente e que a não intervenção
eleva o custo social da existência, onde todos estão se tornando escravos da
própria inépcia social, no que se refere ao assunto posto.
O
blog Mutum Cultural reforça o convite para o Café Literário.
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