quinta-feira, 13 de fevereiro de 2020

A PERGUNTA QUE TODOS FAZEMOS - PARTE II




Nessa segunda parte da entrevista, o autor do livro O Que Farei Da Minha Vida Ao Sair Daqui? Um Ensaio Sobre Pedagogia Carcerária, que abrilhantará o Café Literário, no próximo sábado, a partir das 08:00 hs, na Biblioteca Municipal, evento promovido pela Secretaria de Cultura de Mutum.
         Sérgio Rodrigues de Souza nos conta sobre a iniciativa de escrever essa obra em que filosofia, antropologia, psicologia social e pedagogia se encontram para analisar o homem em suas prisões a partir da busca de perspectiva para a vida.
         O autor também fala da sua expectativa para o Café Literário quando poderá compartilhar com os participantes, cara a cara, sobre a história do seu livro que traz em seu bojo parte da sua história e da sua concepção de vida.



ENTREVISTA


MUTUM CULTURAL: O seu livro surgiu a partir de uma experiência pedagógica em um ambiente específico. Comente sobre essa prática que te levou à reflexão:

SÉRGIO RODRIGUES DE SOUZA: No ano de 2008, a Professora Márcia Luzia Pires de Sá, à época Secretária Municipal de Educação de Mutum, junto à Inspetora Meyre Ribeiro, me convidaram para trabalhar, como professor regente de turma, na Unidade Prisional de Mutum.
Na oportunidade, iniciei um trabalho de registro das atividades pedagógicas, de observação-participante, de depoimentos dos detentos [na condição de estudantes], entrevistas, histórias pessoais, coletivas e sobre todo este material, construí uma investigação acadêmico-científica fundamentada no estudo de autores clássicos nos campos da Antropologia, da Psicologia, da Filosofia e da Sociologia.
Em 2014, fui estudar sob a orientação do Professor Dr. Luis Eligio Martelly, em Havana, que é pesquisador na área de educação prisional e a maior autoridade mundial no assunto, tendo criado métodos inéditos de pesquisa neste campo. Na oportunidade, pude conhecer o sistema educacional cubano, o sistema prisional daquele país e assim, elaborar propostas pedagógicas para adolescentes em condições de privação de liberdade.
Em 2016, fui estudar com a eminente Professora Drª. Amelia Haydèe Imbriano, na Universidad Kennedy (Buenos Aires), a mais conceituada cientista internacional em crimes violentos cometidos por crianças e adolescentes, autora de vários clássicos que trazem reflexões profundas sobre o tema. Neste momento, é que elaboro meus estudos sobre a questão da delinquência juvenil como forma de busca por reconhecimento individual e coletivo, mais uma forma estranha de compensar a ausência da autoridade e da presença parental concreta.
Neste mesmo ano (2016), tenho a oportunidade e a honra de orientar um estudante de Mestrado da Universidad Del salvador (Buenos Aires), o Sr. Belarmino Oliveira, que estudava e pesquisava sistema de educação na Penitenciária de Viana (ES). Este representou um momento ímpar, porque era a hora de observar o trabalho sobre prisões a partir de uma lente externa.

MUTUM CULTURAL: Na sua percepção, o que a perda da liberdade pode provocar no homem?

SÉRGIO RODRIGUES DE SOUZA: A primeira coisa que a perda de liberdade provoca é um alijamento social, o que por si só, já representa um fardo muito intenso e bruto para um ser humano suportar, porque desde muito cedo, somos educados e educamos para uma vida em comunidade, em companhia de outros e isto, a pertença grupal é um sentimento instintivo mais antigo que o próprio ser humano, porque a estrutura cerebral reptiliana antecede em centenas de milhões de anos à estrutura cortical consciente. Estar afastado da sociedade significa, em termos primitivos, a uma condenação existencial.
Na esteira disto, ocorre a perda de alguns sentimentos, como a perda de empatia, transformando o que antes poderia ser um ser humano em qualquer coisa, chegando ao ponto de ser classificado como monstro, ou seja, uma casaca vazia que não sente nada por ninguém.
A perda de noção de tempo é outra parte do processo, as paredes brancas tendem a ir desgastando o senso de mudança das horas e estações até que não exista mais, no indivíduo, a capacidade de determinação do espaço-tempo pensado de forma abstrata como é possível fazer. Ocorre, ainda perda da racionalidade, alterações psicológicas, estas difíceis de prever, porque cada ser irá reagir de forma singular quando privado de sua condição de liberdade.
O pertencimento social conduz a obediência a leis e costumes que dado o seu constante exercício forma o que se chama de consciência social, princípios morais, obediência civil, civilidade, urbanidade, ética. Quando se afasta o indivíduo deste processo, aos poucos seus sentimentos com relação a estas situações vão desaparecendo, uma vez que não são praticados e o que resta é um ser que segue suas próprias leis, este que Aristóteles (384-322a.n.e. [2007] classifica como não sendo humano, chegando a afirmar que ou é um deus ou é um animal, porque somente os deuses e os animais podem viver sem leis e/ou sozinhos.

MUTUM CULTURAL: O que precisa ser aprimorado no nosso sistema prisional?

SÉRGIO RODRIGUES DE SOUZA: A estrutura de cumprimento da sentença, em que a maioria dos condenados fica sem ter o que fazer, perdidos em pensamentos espúrios e vazios. Nisto, surge a necessidade de que se aprimore na questão de proporcionar atividades laborais concretas, destinadas a produzir bens de consumo próprio e que possam gerar divisas para o Estado.
A questão do ensino e das atividades físicas, religiosas, também necessita ser pensadas de forma a que os detentos tenham acompanhamento profissional adequado e isto não se trata de dar a eles, nenhum tipo de privilégio, mas parte da ideia de proporcionar auxílio para que possam ter o mínimo possível de condições de reabilitar-se socialmente.
Quando o sistema deixa o indivíduo entregue à sua própria sorte, crente de que a natureza divina cuida de proteger os homens do mau, direcionando-os para caminhos virtuosos, tem-se a produção de criaturas estranhas e sem medidas que seguirão seus próprios princípios de fé e de verdade.
Atividades laborais irão contribuir para o aperfeiçoamento e mesmo para uma profissionalização do apenado, porque em sua maioria não possuem profissões de ofício, a começar que são detidos em tenra idade; agrega-se a isto, o nosso combalido sistema educacional que, ao estrangular o ensino técnico, entrega para a sociedade, um jovem de 18 anos de idade que não possui uma profissão oficializada, ainda. Dispõe na sociedade um sujeito crítico, mas que não sabe fazer absolutamente nada!



MUTUM CULTURAL: Ao construir sua narrativa, é utilizado a logopeia de Ezra Pound, ou seja, a comparação com narrativas da cultura universal. Dois exemplos são a velha história árabe d’O Gênio Na Garrafa e o Minotauro da mitologia grega. Qual a importância dessas narrativas universais para a compreensão do ser humano na sociedade hoje?

SÉRGIO RODRIGUES DE SOUZA: A garrafa representa o que hoje se preconizou chamar de bolha, onde todos nascem, crescem, formam uma personalidade virtual, reproduzem um vazio intelectual e espiritual, tudo isto na ausência mais completa de qualquer relação de empatia, porque não existe contato físico, como se tal coisa fosse transmitir uma doença crônica mortal.
Assim é que, no aniversário dos amigos e mesmo das pessoas mais próximas como marido, esposa, namoradas, filhos, manda-se um emoj de flores, de abraço, de beijo, uma oração [re]copiada de algum site qualquer, tudo isto em nome do tempo, da falta de tempo, etc... Em pouquíssimos anos, todos à volta são estranhos, o que faz com que quando ocorre um atropelamento, todos querem tirar fotos e selfies com a vítima arrebentada, ao invés de chamar a ajuda especializada.
Com o tempo, torna-se avesso ao contato humano, ao ponto de que se alguém vem com a intenção de dar um abraço isto já é interpretado como assédio e um processo judicial ou um empurrão aguarda o indivíduo inocente. Perde-se a humanidade quando se passa muito tempo afastado do contato humano com seres humanos, lidando tão somente com situações mecânicas de relacionamentos.
Com relação ao Minotauro, o labirinto representa esta existência vazia, sem sentido e que não mostra a menor possibilidade de uma fuga em que o ser humano percorre não se sabe que vias, em busca sabe-se lá de quê, sozinho, porque teme procurar ajuda e nisto admitir que está perdido, porque o seu companheiro, mais perdido que ele, procura em si esta condição de força e de coragem. F. Nietzsche tem um aforismo onde diz: “Eu sou o valor que dou a mim mesmo!” E o valor que a igualdade pode auferir ao ser humano é isto: o nada!, a solidão, o vazio, a ausência de sentido completa para si mesmo. A vida e a existência não podem ser reduzidas a um labirinto sem saída, porque o fracasso constante embrutece até o ponto de ver-se entregue a um estado deplorável de psicopatia.

MUTUM CULTURAL: Em que situações da vida atual o ser humano sente-se como encarcerado e não ousa fazer a pergunta que intitula o livro?

SÉRGIO RODRIGUES DE SOUZA: No Século XXI, a todo instante. E tornou-se escravo desta condição porque teme a resposta que virá de si mesmo; ele não sabe o que fazer de sua vida no instante seguinte, dado que a existência e toda a liberdade porque o ser humano lutou desde fins da década de 1960, transformou-o em um autômato, uma criatura anômica, sem saber o que quer da vida, vivendo de acordo com a gíria: seguindo o fluxo.
Para fazer tal pergunta, é preciso ousar e saber que a resposta pode ser um simples não sei e isto não significa estado de decadência, devendo ser tomado como princípio para buscar uma resposta. Em Filosofia, toda grande descoberta parte de uma pergunta, para a qual inicialmente não se tem resposta alguma, às vezes, nada mais que hipóteses, suposições, elucubrações. O valor encontra-se na coragem de se fazer a pergunta e ao deparar-se com uma incerteza ou um vazio, compreender que faz-se necessário preencher estes espaços em branco e isto somente se consegue enfrentando a realidade, por mais cruel que possa parecer e mesmo apresentar-se ao indivíduo.
O fato de evitar fazer tal pergunta representa despreparo para com a existência, medo de ter que enfrentar a vida e fracassar. No entanto, fracasso e sucesso são faces da mesma moeda, produtos da ação. Como diria o Zaratustra de Nietzsche: “Eis a vida! Então, vamos à vida!”    

MUTUM CULTURAL: O que este livro diz para os trabalhadores na educação como professores, especialistas, diretores e serviçais, bem como os gestores, no exercício da sua profissão?

SÉRGIO RODRIGUES DE SOUZA: Educação é um compromisso social, não um direito como se quer fazer acreditar; é um dever cívico. A comunidade escolar deve tomar para si a missão de formar um homem em sua integralidade. E isto implica em construir valores concretos, tendo em vista a história daqueles que nos antecederam e a pretensão de construir um Estado melhor, não abstendo da tradição clássica e nem dos princípios humanísticos que permitiriam ao homem resistir a tantas e tantas mudanças radicais.
À escola cabe ensinar aos estudantes como aplicar seu intelecto para o crescimento individual e social e nisto inclui o respeito e a obediência àquilo que mais se possui de valor na sociedade: O Outro. Nietzsche expressa sobre isto o seguinte: “Quando se julga um criminoso, diz-se que ele falhou com a sociedade. engano fatal. Foi a família, a escola, o padre, o pastor, todos que falharam com ele” (2007) e, por consequência, todos falharam ainda com a sociedade que passa a temer este indivíduo e a sofrer em suas mãos.

MUTUM CULTURAL: Quais são as suas expectativas para o Café Literário no dia 15 desse mês, na Biblioteca Municipal?

SÉRGIO RODRIGUES DE SOUZA: Minha expectativa é a de que os participantes entendam que o livro é uma expressão de que existe uma necessidade premente de discussão sobre uma problemática e não sobre um problema isolado. Todo o texto traz uma discussão em torno de uma situação factual, presente e crescente e que a não intervenção eleva o custo social da existência, onde todos estão se tornando escravos da própria inépcia social, no que se refere ao assunto posto.

 PRIMEIRA PARTE DA ENTREVISTA: MUTUM CULTURAL


                      O blog Mutum Cultural reforça o convite para o Café Literário.


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